Por: Cristina Guerini | 29 Agosto 2016
No dia 27 de agosto, celebra-se a memória de Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom Hélder Câmara. A vida dos religiosos é marcada por uma longa jornada de proteção aos pobres, luta pela justiça social, fé e amor ao próximo.
Dom Hélder (à esquerda) e Dom Luciano (Foto: Irmandade dos mártires)
Dom Luciano (Foto: Diocese de Mariana)
Dom Luciano Mendes de Almeida, SJ, falecido em 2006, foi Arcebispo de Mariana, em Minas Gerais, presidente e secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e secretário na Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, ocorrida em 1979, em Puebla, no México. Dedicou sua trajetória à caridade, sobretudo às crianças e aos mais humildes. Fundou a Pastoral do Menor, que inspirou a redação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.
Em 27 de junho de 2002, Dom Luciano esteve no Instituto Humanitas Unisinos - IHU proferindo a conferência A Reinvenção do Bem Comum e o Ensino Social da Igreja. Na ocasião, concedeu a entrevista Reinventando o Bem Comum à IHU On-Line e, numa entrevista realizada poucos meses antes da sua morte, em 08-10-2005, quando orientava um retiro espiritual no Centro de Espiritualidade Cristo Rei - CECREI, em São Leopoldo, RS, ele relatou à IHU On-Line, algo da sua trajetória de vida.
Reproduzimos, a seguir, alguns trechos da entrevista.
IHU On-Line – D. Luciano, quais foram os momentos mais felizes de sua vida?
Luciano Mendes de Almeida - Minha vida toda é muito feliz. Uma das coisas que Deus me faz compreender é o valor da história e da consciência. [...] Poderia sublinhar alguns momentos felizes.
O primeiro é o contato com o sofrimento humano, perceber que a história é muito marcada por aspectos positivos e também negativos. Penetrar nesse sofrimento, comungar com esse sofrimento, partilhar esse sofrimento, creio que isso proporciona uma carga existencial muito grande.
Trabalhei cinco anos na prisão, na Itália, depois com as populações mais pobres na periferia de São Paulo, hoje com os ambientes rurais pobres de Mariana. Eu creio que isso dinamiza muito a própria vida numa fase de experiência e comunhão existencial.
Outros momentos: eu tive oportunidade de passar por todos os países da América Central, nos anos de 1980, a serviço do CELAM, entrei em contato com a Guatemala, El Salvador, a Nicarágua, Honduras, o Panamá, mais tarde também com Cuba, e tudo isso me despertou muito a consciência da América Latina. É a situação de populações sofridas, esmagadas, incompreendidas, empobrecidas que também desperta uma grande vontade de trabalhar e ajudar. São populações, às vezes, indígenas e, às vezes, que passaram pela tristeza da escravidão. Poder comungar com essas realidades é um aspecto que me ensinou a perceber que Deus não tira as dificuldades, mas ajuda a superá-las. Não se deve pedir um milagre porque o milagre é uma exceção dentro da normalidade da vida humana, mas pedir força para enfrentar essas situações, justamente em comunhão com as outras realidades em que tantos se encontram e são muito mais árduas do que aquela que uma pessoa isoladamente pode enfrentar.
Uma alegria maior, quase pontualizada, é a alegria de ver a recuperação de certas pessoas, seja da dependência química, da dependência de drogas, seja de um processo de conversão pessoal. Isso dá muita alegria para quem tem a missão de querer ajudar os outros a reencontrar a paz interior.
Essas são alegrias pontuais e um pouco desconhecidas, a alegria de ser um pequeno instrumento da paz de Deus.
IHU On-Line - Quais os momentos mais dramáticos que o senhor viveu?
Luciano Mendes de Almeida - Em primeiro lugar, os funerais de Dom Oscar Romero, em El Salvador. Eu fui um dos três bispos presentes e vi a explosão da bomba, o tiroteio contra a população, as mortes na praça, vivendo um momento de grande dramaticidade, ajudando no enterro de Oscar Romero dentro da igreja, horas, e horas, e horas, junto com aquele povo que é tão sofrido.
Em segundo lugar, foi a guerrilha e a situação de conflito no Líbano, onde estive em contato com doze grupos religiosos diferentes em 1987. Era um momento de grande aflição para o Líbano, e ali, falando com os sunitas, com os xiitas, com os armênios, com os caldeus, fiquei muito impressionado com o sofrimento daquele povo, que buscava de novo a sua harmonia, o seu diálogo depois de tantos momentos de aflição.
Em terceiro lugar, me marcaram muito as injustiças com problemas de terra aqui no Brasil, especialmente o assassinato de padre Josimo, de padre João Bosco Burnier, de Ezequiel Ramim e a prisão dos padres Aristides e Francisco Goriou. Tudo isso eu acompanhei de perto e me marcaram muito a coragem desses irmãos na fé e a dureza das situações que tiveram de enfrentar e a consequência que esses fatos tiveram sobre a minha vida.
IHU On-Line - Quem são as principais pessoas que marcaram sua vida? Aquelas que lhe servem de inspiração?
Luciano Mendes de Almeida - Quem mais me impressionou em todas as situações de existência foi o cardeal Francisco Xavier Van Thuan, que ficou nove anos na prisão incomunicável, no Vietnã. Eu tive a oportunidade de tratar com ele várias vezes, foi a pessoa que mais bem me fez na vida e considero uma grande graça tê-lo conhecido.
IHU On-Line - Qual é sua percepção da conjuntura política atual? Que outras formas de atuação poderiam evitar excessos dos governantes?
Luciano Mendes de Almeida – [...] É necessário que procuremos, com urgência, em curto prazo, a maior atuação dos cidadãos no progresso e no desenvolvimento do País, que reencontremos a participação popular e a democracia participativa. Como primeira iniciativa, creio que deveríamos incrementar as Assembleias Legislativas municipais com a presença de mais participantes da sociedade local para estabelecer o orçamento, depois as leis de diretrizes, os programas imediatos e as garantias de acompanhamento desses programas.
Quando o cidadão deixar de ser espectador para ser também executor, nós teremos uma nova fase na caminhada da democracia nacional. Se bem que, para o governo ser indispensável, é necessário descobrir formas novas para que haja uma co-responsabilidade e, digamos, um enriquecimento, um aperfeiçoamento de todas as medidas que são necessárias para a promoção do bem comum.
IHU On-Line - Como o senhor, que tem uma vida tão ativa, no País e na Igreja, se sente diante dessa situação?
Luciano Mendes de Almeida - Creio que nós temos que ser muito simples e objetivos. A situação de um país com mais de 180 milhões de habitantes, é complexa. Nós herdamos falhas estruturais muito grandes. Não podemos esquecer que até o fim do século XIX, nós tivemos a triste realidade da escravidão, uma diferença social muito grande, uma desorganização no acesso à cultura, aos bens necessários. Tudo isso é um passado muito forte e que faz com que o Brasil seja um país de difícil condução pública, mas eu creio que tem havido também conquistas e, no momento, é importante investir no povo, porque, afinal, é a nossa grande reserva moral. Basta ver as famílias, as pessoas simples, por exemplo, onde eu moro. São pessoas corretas, que trabalham, têm expectativas de uma melhoria das condições de vida.
Assim retratado pelo cinema, Dom Hélder Câmara, falecido em 1999, foi arcebispo emérito de Olinda e Recife e fundou a CNBB. Também é conhecido por ter organizado mais de 500 Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Além disso, atuou em momentos decisivos da igreja, principalmente quando participou da Segunda e da Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Medellín, na Colômbia, e Puebla e do Concílio Vaticano II, ocasiões em que defendeu a opção pelos pobres.
O místico, poeta e protetor dos pobres, tornou-se o calo no calcanhar da ditadura civil-militar brasileira. Um dos principais líderes da Igreja no Brasil, Câmara foi, na definição de José Oscar Beozzo, “síntese da melhor tradição espiritual da América Latina”. Por sua militância em defesa dos direitos humanos, foi o único brasileiro indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz.
Dom Hélder, com muita coragem, proferiu o discurso Quaisquer que sejam as consequências, em Paris, na França, para uma plateia de mais de 20 mil pessoas, em que denunciou a tortura no Brasil. O “Santo rebelde” foi silenciado pela ditadura e em 1985 foi nomeado Bispo Emérito. Todavia, jamais abandonou a cena pública, lançando, em 1990, a campanha Ano 2000 Sem Miséria. Continuou realizando o trabalho na promoção da paz até os 90 anos.
D. Helder discursa em Paris e denuncia a prática de torturas no Brasil (Foto: Fundo Última Hora/Apesp)
Dom Hélder e Dom Luciano tiveram seus processos de beatificação abertos pelo Vaticano em 2015 e 2014, respectivamente. Agora, a canonização é aguardada com ansiedade no Brasil.
Assista ao filme O Santo rebelde
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Dom Hélder Câmara e Dom Luciano Mendes de Almeida: paladinos dos pobres e da justiça - Instituto Humanitas Unisinos - IHU